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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE - FREUD

ESTE MATERIAL AUXILIARÁ PARA FAZER O TDE PROPOSTO PELA PROF MARISA.

POSTAREI POR PARTES, POR SER MUITO EXTENSO.
SEGUE A PRIMEIRA LIÇÃO.
Cinco Lições de Psicanálise
De Sigmund Freud
Pronunciadas por ocasião das comemorações do vigésimo aniversário da Fundação da Clark University, Worcester, Massachusetts, setembro de 1909
Tradução de Durval Marcondes e J. Barbosa corra, revista e modificada por Jayme Salomão
(Do Livro: Os Pensadores, Abril Cultural, 1974, págs. 11 a 44)
Nota do Editor Inglês
(James Strachey)
Über (James Strachey) Psychoanalyse
(a) Edições alemãs:
1910 Leipzig e Viena: Deuticke. Pág. 62. (2.ª ed., 1912, 3.ª ed., 1916, 4.a ed., 1919, 5.ª ed., 1920, 6.ª ed., 1922, 7ªa ed., 1924, 8.ª ed., 1930; todas sem modificações).
1924 Gesammelte Schriften, IV, 349-406. (Ligeiramente modificada.) 1943 Gesammelte Werke, VIII, 3-60. (Não modificada da G. S.)
(b) Tradução inglesa:
"The Origin and Developintent of Psychoanalysis",
1910 A m J. PsychoL, XXI (2 e 3), págs. 181-218. (Tr. H. W. Chase.)
1910 Em Lectures and Addresses Delivered before the Departments of Psychology and Pedagogy in Celebration of the Twentieth Anniversarj, of the Opening of Clark University, Worcester, Mass., Parte 1, págs. 1-38. (Reimpressão da acima mencionada.)
1924 Em An Outline of Psychoanalysís, ed. Van Teslaar, Nova York: Boni and Liveright. Págs. 21-70. (Reedição da acima mencionada.)
A presente tradução inglesa, inteiramente nova, com o título diferente de Five Lectures on Psycho-Analysis, é de James Strachey.
Em 1909, a Clark University, Worcester, Massachusetts, comemorou o vigésimo ano de sua fundação, e seu presidente, o Dr. G. Stanley Hall, convidou Freud e alguns de seus principais seguidores (C.F.G. Jung, S. Ferenczi, Ernest Jones e A. A. Brill) para participarem das celebrações e receberem graus honoríficos. Foi em dezembro de 1908 que Freud recebeu pela primeira vez o convite, mas foi somente no outono seguinte que esse convite se concretizou, tendo as cinco conferências de Freud sido pronunciadas na segunda-feira, 6 de setembro de 1909, e nos quatro dias subseqüentes. Isto, conforme declarou o próprio Freud na ocasião, foi o primeiro reconhecimento oficial da novel ciência, havendo ele descrito em seu Autobiographical Study (Estudo Autobiográfico) (1925d, Capítulo V) como, ao subir ao estrado para pronunciar suas conferências, "isso lhe pareceu a concretização de um incrível devaneio".*
As conferências (em alemão, naturalmente) foram, de acordo com a prática quase universal de Freud, pronunciadas de improviso e, conforme nos informa o Dr. Jones, sem notas e depois de muito pouco preparo. Foi somente depois de sua volta a Viena que ele foi induzido, a contragosto, a escrevê-las. Esse trabalho somente foi concluído na segunda semana de dezembro, mas sua memória verbal era tão boa que, segundo nos assegura o Dr. Jones, a versão impressa "não fugia muito da exposição original". Sua primeira publicação foi feita numa tradução inglesa no American Journal of Psychology no inicio de 1910, mas o original em alemão apareceu pouco depois sob a forma de panfleto em Viena.* * O trabalho tornou-se popular e teve várias edições; em nenhuma delas, contudo, houve qualquer alteração de substância, salvo quanto à nota de rodapé acrescentada em 1923 bem no início, aparecendo somente no Gesammelte Schriften e Gesammelte Werke, nos quais Freud retirou suas expressões de gratidão a Breuer. Um exame da atitude modificada de Freud quanto a Breuer encontrar-se-á na Introdução do Editor a Studies on Hysteria (Estudos Sobre a Histeria), Standard Ed., II, XXVI e segs.
Durante toda a sua carreira Freud sempre estava pronto a apresentar exposições de suas descobertas. Já publicara ele alguns curtos relatos de psicanálise, mas esse grupo de conferências foi o primeiro numa escala ampliada. Essas exposições naturalmente variavam de dificuldade de acordo com o auditório para o qual se destinavam, devendo essas ser consideradas como as mais simples, mormente quando postas em confronto com a grande série de Introductory Lectures (Conferências Introdutórias) pronunciadas alguns anos depois (1916-17). Não obstante, apesar de todos os acréscimos que iriam ser feitos à estrutura da psicanálise durante o próximo quartel de um século, essas conferências ainda proporcionam admirável quadro preliminar que exige muito pouca correção. E dão elas uma excelente idéia da facilidade e clareza de estilo e do irrestrito sentido de forma que tornou Freud um conferencista tão notável quanto à exposição.
Consideráveis trechos da tradução anterior (1910) deste trabalho foram incluídos na General Selection from the Works of Sigmund Freud) (Seleção Geral dos Trabalhos de Sigmund Freud), de Rickman (1937, págs. 3-43).* * *
PRIMEIRA LIÇÃO
SENHORAS E SENHORES - Constitui para mim sensação nova e embaraçosa apresentar-mo como conferencista ante um auditório de estudiosos do Novo Mundo. Considerando que devo esta honra tão-somente ao fato de estar meu nome ligado ao tema da psicanálise, será esse, por conseqüência, o assunto de que lhes falarei, tentando proporcionar-lhes, o mais sinteticamente possível, uma visão de conjunto da história inicial e do ulterior desenvolvimento desse novo processo semiológico e terapêutico.
Se algum mérito existe em ter dado vida à psicanálise, a mim não cabe,1 pois não participei de suas origens. Era ainda estudante e ocupava-me com os meus últimos exames, quando outro médico de Viena, o Dr. Joseph Breuer,2 empregou pela primeira vez esse método no tratamento de uma jovem histérica (1880-1882). Ocupemo-nos, pois, primeiramente, da história clínica e terapêutica desse caso, a qual se acha minuciosamente descrita nos Studies on Hysteria (Estudos Sobre a histeria) [1895d]3 que mais tarde publicamos, o Dr. Breuer e eu.
Mas, preliminarmente, uma observação. Vim a saber, aliás com satisfação, que a maioria de meus ouvintes não pertence à classe médica. Não cuidem, porém, que seja necessária uma especial cultura médica para acompanhar minha exposição. Caminharemos por algum tempo ao lado dos médicos, mas logo deles nos apartaremos, para seguir, com o Dr. Breuer, uma rota absolutamente original.
A paciente do Dr. Breuer, uma jovem de 21 anos, de altos dotes intelectuais, manifestou, no decurso de sua doença, que durou mais de dois anos, uma série de perturbações físicas e psíquicas mais ou menos graves. Tinha uma paralisia espástica de ambas as extremidades do lado direito, com anestesia, sintoma que se estendia por vezes aos membros do lado oposto; perturbações dos movimentos oculares e várias alterações da visão; dificuldade em manter a cabeça erguida: tosse nervosa intensa; repugnância pelos alimentos e impossibilidade de beber durante várias semanas, apesar de uma sede martirizante; redução da faculdade de expressão verbal, que chegou a impedi-la de falar ou entender a língua materna; e, finalmente, estados de absence 4 (ausência), de confusão, de delírio e de alteração total da personalidade, aos quais voltaremos mais adiante a nossa atenção.
Ao terem notícia de semelhante quadro mórbido, os senhores tenderão, mesmo não sendo médicos, a supor que se trate de uma doença grave, provavelmente do cérebro, com poucas esperanças de cura, que levará rapidamente o enfermo a um desenlace fatal. Os médicos podem, entretanto, assegurar-lhes que, numa série de casos com fenômenos da mesma gravidade, justifica-se outra opinião muito mais favorável. Quando tal quadro mórbido é encontrado em indivíduo jovem do sexo feminino, cujos órgãos vitais internos (coração, rins, etc.) nada revelam de anormal ao exame objetivo, mas que sofreu no entanto violentos abalos emocionais, e quando, em certas minúcias, os sintomas se afastam do comum, já os médicos não consideram o caso tão grave. Afirmam que não se trata de uma afecção cerebral orgânica, mas desse enigmático estado que desde o tempo da medicina grega é denominado histeria e que pode simular todo um conjunto de graves perturbações. Nesses casos não consideram a vida ameaçada e até acham provável o restabelecimento completo. Nem sempre é fácil distinguir a histeria de uma grave doença orgânica. Não nos importa, porém, precisar aqui como se faz um diagnóstico diferencial desse gênero, bastando-nos a certeza de que o caso da paciente de Breuer era daqueles em que nenhum médico experimentado deixaria de fazer o diagnóstico de histeria. Podemos também acrescentar, consoante a histeria clínica, não só que a afecção lhe apareceu quando estava tratando do pai, que ela adorava e cuja grave doença havia de conduzi-lo à morte, como também que ela, por causa de seus próprios padecimentos, teve de abandonar a cabeceira do enfermo.
Até aqui nos tem sido vantajoso caminhar ao lado dos médicos, mas breve os deixaremos. Não devem os senhores esperar que o diagnóstico de histeria, em substituição ao de afecção cerebral orgânica grave, possa melhorar consideravelmente para o doente a perspectiva de um auxilio médico. Se a medicina é o mais das vezes impotente em face das lesões cerebrais orgânicas, diante da histeria o médico não sabe, do mesmo modo, o que fazer, tendo de confiar à providencial natureza a maneira e a ocasião em que se há de cumprir seu esperançoso prognóstico. 5
Com o rótulo de histeria pouco se altera, portanto, a situação do doente, enquanto que para o médico tudo se modifica. Pode-se observar que este se comporta para com o histérico de modo completamente diverso que para com o que sofre de uma doença orgânica. Nega-se a conceder ao primeiro o mesmo interesse que dá ao segundo, pois, não obstante as aparências, o mal daquele é muito menos grave. Mas acresce outra circunstância: o médico, que, por seus estudos, adquiriu tantos conhecimentos vedados aos leigos, pode formar uma idéia da etiologia das doenças e de suas lesões, como, por exemplo, nos casos de apoplexia ou de tumor cerebral, idéia que até certo ponto deve ser exata, pois lhe permite compreender os pormenores do quadro mórbido. Em face, porém, das particularidades dos fenômenos histéricos, todo o seu saber e todo o seu preparo em anatomia, fisiologia e patologia deixam-no desamparado. Não pode compreender a histeria, diante da qual se sente como um leigo, posição nada agradável a quem tenha em alta estima o próprio saber. Os histéricos ficam, assim, privados de sua simpatia. Ele os considera como transgressores das leis de sua ciência, tal como os crentes consideram os hereges: julga-os capazes de todo mal, acusa-os de exagero e de simulação, e pune-os com lhes retirar seu interesse.
O Dr. Breuer não mereceu certamente essa censura com relação a sua paciente. Embora não pretendesse, no princípio, curá-la, não lhe negou, entretanto, interesse e simpatia, o que lhe foi provavelmente facilitado pelas elevadas qualidades de espírito e de caráter da jovem, das quais ele nos dá testemunho na história clínica que redigiu. Sua carinhosa observação proporcionou-lhe bem logo o caminho que lhe permitiu prestar à doente os primeiros auxílios.
Havia-se notado que, nos estados de absence (alteração da personalidade acompanhada de confusão), costumava a doente murmurar algumas palavras que pareciam relacionar-se com aquilo que lhe ocupava o pensamento. O médico, que anotara essas palavras, colocou a moça numa espécie de hipnose e repetiu-as, para incitá-la a associar idéias. A paciente entrou, assim, a reproduzir diante do médico as criações psíquicas que a tinham dominado nos estados de absence e que se haviam traído naquelas palavras isoladas. Eram fantasias profundamente tristes, muitas vezes de poética beleza - devaneios, como podiam ser chamadas -. que tomavam habitualmente como ponto de partida a situação de uma jovem a cabeceira do pai doente. Depois de relatar certo número dessas fantasias, sentia-se ela como que aliviada e reconduzida à vida normal. Esse bem-estar durava muitas horas e desaparecia no dia seguinte para dar lugar a nova absence, que cessava do mesmo modo pela revelação das fantasias novamente formadas. É forçoso reconhecer que a alteração psíquica manifestada durante as absences era conseqüência da excitação proveniente dessas fantasias intensamente afetivas. A própria paciente, que nesse período da moléstia só falava e entendia inglês, deu a esse novo gênero de tratamento o nome de talking cure (cura de conversação), qualificando-o também, por gracejo, de chimney sweeping6 (limpeza da chaminé).
Verificou-se logo, como por acaso, que, limpando-se a mente por esse modo, era possível conseguir alguma coisa mais que o afastamento passageiro das repetidas perturbações psíquicas. Pôde-se também fazer desaparecer sintomas quando; na hipnose, a doente recordava, com exteriorização afetiva, a ocasião e o motivo do aparecimento desses sintomas pela primeira vez. "Tinha havido, no verão, uma época de calor intenso e a paciente sofria de sede horrível, pois, sem que pudesse explicar a causa, viu-se, de repente, impossibilitada de beber. Tomava na mão o cobiçado copo de água, mas, assim que o tocava com os lábios, repelia-o como hidrófoba. Nesses poucos segundos, ela se achava evidentemente em estado de absence. Para mitigar a sede que a martirizava, vivia somente de frutas, melões, etc. Quando isso já durava perto de seis semanas, falou, certa vez, durante a hipnose, a respeito de sua dama de companhia inglesa, de quem não gostava, e contou então com demonstrações da maior repugnância que, tendo ido ao quarto dessa senhora, viu, bebendo num copo, o seu caõzinho, um animal nojento. Nada disse, por polidez. Depois de exteriorizar energicamente a cólera retida, pediu de beber, bebeu sem embaraço grande quantidade de água e despertou da hipnose com o copo nos lábios. A perturbação desapareceu definitivamente."7
Permitam-me que os detenha alguns momentos ante esta experiência. Ninguém, até então, havia removido por tal meio um sintoma histérico nem penetrado tão profundamente na compreensão da sua causa. O descobrimento desses fatos devia ser de ricas conseqüências, se se confirmasse a esperança de que outros sintomas da doente - e talvez a maioria - se houvessem originado do mesmo modo e do mesmo modo pudessem ser suprimidos. Para verificá-los, Breuer não mediu esforços e pesquisou sistematicamente a patogenia de outros sintomas mais graves. E realmente era assim. Quase todos se haviam formado desse modo, como resíduos - como "precipitados", se quiserem - de experiências emocionais que, por essa razão, foram denominadas posteriormente "traumas psíquicos"; e o caráter particular a cada um desses sintomas se explicava pela relação com a cena traumática que o causara. Eram, segundo a expressão técnica, determinados pelas cenas, cujas lembranças representavam resíduos, não havendo já necessidade de considerá-los como produtos arbitrários ou enigmáticos da neurose. Registremos apenas uma complicação que não fora prevista: nem sempre era um acontecimento que deixava atrás de si os sintomas; para produzir tal efeito uniam-se na maioria dos casos numerosos traumas, às vezes análogos e repetidos. Toda essa cadeia de recordações patogênicas tinha então de ser reproduzida em ordem cronológica e precisamente inversa - as últimas em primeiro lugar e as primeiras por último -, sendo completamente impossível chegar ao primeiro trauma, muitas vezes o mais ativo, saltando-se sobre os que ocorreram posteriormente.
Os senhores desejam, por certo, que lhes apresente outros exemplos de produção de sintomas histéricos, além do da hidrofobia originada pela repugnância diante do cão que bebia no copo. Para manter-me, porém, no meu programa, devo limitar-me a poucas ilustrações. Assim, relata Breuer que as perturbações visuais da doente remontavam a situações como aquelas em que "estando a paciente com os olhos marejados de lágrimas, junto ao leito do enfermo, perguntou-lhe este, de repente, que horas eram, e, não podendo ela ver distintamente, forçou a vista, aproximando dos olhos o relógio, cujo mostrador lhe pareceu então muito grande - devido à macropsia e ao estrabismo convergente. Ou se esforçou em reprimir as lágrimas para que o enfermo não as visse".8 Todas as impressões patogênicas provinham, aliás, do tempo em que ela se dedicava ao pai doente. "Uma noite velava muito angustiada junto ao doente febricitante e estava em grande ansiedade porque se esperava de Viena um cirurgião para operá-lo. Sua mãe ausentara-se por algum tempo e Anna, sentada à cabeceira do doente, pôs o braço direito sobre o espaldar da cadeira. Caiu em estado de semi-sonho e viu, como se viesse da parede, uma cobra negra que se aproximava do enfermo para mordê-lo. (É muito provável que no campo situado atrás da casa algumas cobras tivessem de fato aparecido, assustando anteriormente a moça e fornecendo agora o material de alucinação.) Ela quis afastar o ofídio, mas estava como que paralisada; o braço direito, que pendia no espaldar, achava-se "adormecido", insensível e parético, e, quando ela o contemplou, transformaram-se os dedos em cobrinhas cujas cabeças eram caveiras (as unhas). Provavelmente procurou afugentar a cobra com a mão direita paralisada e por isso a anestesia e a paralisia da mesma se associaram com a alucinação da serpente. Quando esta desapareceu, aterrorizada, quis rezar, mas não achou palavras em idioma algum, até que, lembrando-se duma poesia infantil em inglês, pôde pensar e rezar nessa língua." 9 Com a reconstituição dessa cena durante a hipnose foi removida a paralisia espástica do braço direito, que existia desde o começo da moléstia, e teve fim o tratamento.
Quando, alguns anos mais tarde, comecei a empregar nos meus próprios doentes o método semiótico e terapêutico de Breuer, fiz experiências que concordam com as dele. Numa senhora de cerca de quarenta anos existia um tic (tique) sob a forma de um especial estalar de língua, que se produzia quando a paciente se achava excitada e mesmo sem causa perceptível. Originara-se esse tique em duas ocasiões, nas quais, sendo desígnio dela não fazer nenhum rumor, o silêncio foi rompido contra sua vontade justamente por esse estalido. Urna vez, foi quando com grande trabalho conseguira finalmente fazer adormecer seu filhinho doente, e desejava, no íntimo, ficar quieta para o não despertar: outra vez, quando numa viagem de carro com dois filhos, por ocasião de uma tempestade, assustaram-se os cavalos e ela cuidadosamente quisera evitar qualquer ruído para que os animais não se espantassem ainda mais.10 Dou esse exemplo dentre muitos outros que se acham consignados nos Studies on Hysteria11 (Estudos Sobre a Histeria).
Senhoras e Senhores. Se me permitem uma generalização - inevitável numa exposição tão breve -, podemos sintetizar os conhecimentos até agora adquiridos na seguinte fórmula: os histéricos sofrem de reminiscências. Seus sintomas são resíduos e símbolos mnêmicos de experiências especiais (traumáticas). Uma comparação com outros símbolos mnêmicos de gênero diferente talvez nos permita compreender melhor esse simbolismo. Os monumentos com que ornamos nossas cidades são também símbolos dessa ordem. Passeando em Londres, verão, diante de uma das maiores estações da cidade, urna coluna gótica ricamente ornamentada - a Charing Cross. No século XIII, um dos velhos reis plantagenetas, que fez transportar para Westminster os restos mortais de sua querida esposa e rainha Eleanor, erigiu cruzes góticas nos pontos em que havia pousado o esquife. Charing Cross é o último desses monumentos destinados a perpetuar a memória do cortejo fúnebre.12 Em outro ponto da cidade, não muito distante da London Bridge, verão uma coluna moderna e muito alta, chamada simplesmente The Monument, cujo fim é lembrar o grande incêndio que em 1666 irrompeu ali perto e destruiu boa parte da cidade. Tanto quanto se justifique a comparação, esses monumentos são também símbolos mnêmicos como os sintomas histéricos. Mas que diriam do londrino que ainda hoje se detivesse compungido ante o monumento erigido em memória do enterro da rainha Eleanor, em vez de tratar de seus negócios com a pressa exigida pelas modernas condições de trabalho, ou de pensar satisfeito na jovem rainha de seu coração? Ou de outro que em face do Monument chorasse a incineração da cidade querida, reconstruída depois corri tanto brilho? Como esses londrinos pouco práticos, procedem, entretanto, os histéricos e neuróticos: não só recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo, corno ainda se prendem a eles emocionalmente; não se desembaraçam do passado e alheiam-se por isso da realidade e do presente. Essa fixação da vida psíquica aos traumas patogênicos é um dos caracteres mais importantes da neurose e dos que têm maior significação prática.
Desde já aceito a objeção que provavelmente os senhores formularam refletindo sobre a história da paciente de Breuer. Todos os traumas que influíram na moça datavam do tempo em que ela cuidava do pai doente, e os sintomas que apresentava podem ser considerados como simples sinais mnêmicos da doença e da morte dele. Correspondem, portanto, a uma manifestação de luto, e a fixação à memória do finado, tão pouco tempo depois do traspasse, nada representa de patológico; corresponde antes a um processo emocional normal. Reconheço que na paciente de Breuer a fixação aos traumas nada tem de extraordinário. Mas em outros casos - como no tique por mim tratado, cujos fatores datavam de mais de quinze e dez anos - é muito nítido o caráter da fixação anormal ao passado. A doente de Breuer nos haveria de oferecer oportunidade de apreciar a mesma fixação anormal, se não tivesse sido tratada pelo método catártico tão pouco tempo depois do traumatismo e da eclosão dos sintomas.
Até aqui apenas discorremos sobre as relações entre os sintomas histéricos e os fatos da vida da doente, mas dois outros elementos da observação de Breuer podem também indicar-nos como conceber tanto o mecanismo da moléstia como o do restabelecimento.
Quanto ao primeiro, é preciso salientar que a doente de Breuer em quase todas as situações teve de subjugar uma poderosa emoção, em vez de permitir sua descarga por sinais apropriados de emoção, palavras ou ações. No trivialíssimo incidente relativo ao cãozinho de sua dama de companhia, por consideração a esta ela não deixou sequer transparecer a sua profunda aversão; velando à cabeceira do pai, estava sempre atenta para que o doente não lhe percebesse a ansiedade e a penosa depressão. Ao reproduzir posteriormente estas mesmas cenas diante do médico, a energia afetiva então inibida manifestava-se intensamente, como se estivera até então represada. Além disso, o sintoma - resíduo desta cena - atingia a máxima intensidade quando durante o tratamento ia-se chegando à sua causa, para desaparecer completamente quando esta se aclarava inteiramente. Por outro lado, pôde-se verificar que era inútil recordar a cena diante do médico se, por qualquer razão, isto se dava sem exteriorização afetiva. Era pois a sorte dessas emoções, que podemos imaginar como grandezas variáveis, o que regulava tanto a doença como a cura. Tinha-se de admitir que a doença se instalava porque a emoção desenvolvida nas situações patogênicas não podia ter exteriorização normal; e que a essência da moléstia consistia na atual utilização anormal das emoções "enlatadas". Em parte ficavam estas como carga contínua da vida psíquica e fonte permanente de excitação para a mesma; em parte se desviavam para insólitas inervações e inibições somáticas, que se apresentavam como os sintomas físicos do caso. Para este último mecanismo propusemos o nome de "conversão histérica". Demais, uma certa parte de nossas excitações psíquicas é conduzida normalmente para a inervação somática, constituindo aquilo que conhecemos por "expressão das emoções". A conversão histérica exagera então essa parte da descarga de um processo mental catexizado emocionalmente; ela representa uma expressão mais intensa das emoções, conduzida por nova via. Quando uma corrente de água se escoa por dois canais, num deles o líquido se elevará, logo que no outro se interponha um obstáculo. Como vêem, estamos quase negando a uma teoria puramente psicológica da histeria, onde assinalamos o primeiro lugar para os processos afetivos.
Urna segunda observação de Breuer obriga-nos agora a atribuir grande significação aos estados de consciência para a característica dos fatos mórbidos. A doente de Breuer exibia, ao lado de seu estado normal, vários outros de absence, confusão e alterações do caráter. Em estado normal ela ignorava totalmente as cenas patogênicas ou pelo menos havia rompido a conexão patogênica. Sob hipnose era possível, depois de considerável esforço, trazer tais cenas à memória, e por este trabalho de evocação os sintomas eram removidos. Ficaríamos em grande perplexidade para interpretar esse fato se a experiência do hipnotismo já não nos tivesse indicado o caminho. Pelo estudo dos fenômenos hipnóticos tornou-se habitual a concepção, a princípio estranhável, de que num mesmo indivíduo são possíveis vários agrupamentos mentais que podem ficar mais ou menos independentes entre si, sem que um "nada saiba" do outro, e que podem se alternar entre si em sua emersão à consciência. Casos destes, também ocasionalmente, aparecem de forma espontânea, sendo então descritos como exemplos de double conscience.13 Quando nessa divisão da personalidade a consciência fica constantemente ligada a um desses dois estados, chama-se esse o estado mental conscience e o que dela permanece separado o inconsciente. Nos conhecidos fenômenos da chamada "sugestão pós-hipnótica", em que uma ordem dada durante a hipnose é depois, no estado normal, imperiosamente cumprida, tem-se um esplêndido modelo das influências que o estado inconsciente pode exercer no consciente, modelo esse que permite sem dúvida compreender o que ocorre na manifestação da histeria. Breuer resolveu admitir que os sintomas histéricos apareciam em estados mentais particulares que chamava "hipnóides". As excitações durante esses estados hipnóides tomam-se facilmente patogênicas porque não encontram neles as condições para a descarga normal do processo de excitação. Origina-se então, do processo de excitação, um produto anormal - o sintoma - que, como corpo estranho, se insinua no estado normal, escapando a este, por isso, o conhecimento da situação patogênica hipnóide. Onde existe um sintoma, existe também urna amnésia, uma lacuna da memória, cujo preenchimento suprime as condições que conduzem à produção do sintoma.
Receio que esta parte de minha exposição não lhes pareça muito clara. Os presentes devem, contudo, ser indulgentes; trata-se de concepções novas e difíceis que talvez não possam fazer-se muito mais claras, prova de que nossos conhecimentos ainda não progrediram muito. A teoria de Breuer, dos estados hipnóides, tornou-se aliás embaraçante e supérflua, e foi abandonada pela psicanálise moderna. Mais tarde me ouvirão falar, nem que seja sucintamente, das influências e processos que era mister descobrir atrás das fronteiras dos estados hipnóides, por Breuer fixadas. Hão de ter tido também a impressão, sem dúvida justa, de que a pesquisa de Breuer só lhes pode dar uma teoria muito incompleta e uma explicação insuficiente dos fenômenos observados; porém as teorias completas não caem do céu e com toda razão desconfiarão se alguém lhes apresentar, logo no início de suas observações, uma teoria sem falhas, otimamente rematada. Tal teoria certamente só poderá ser filha de sua especulação e nunca o fruto da pesquisa imparcial e desprevenida da realidade.

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